Que Europa?

Fonte: Observador

A Europa jaz, posta nos cotovelos (…)

Fita, com o olhar ‘sfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

Fernando Pessoa, “O Dos Castelos”, in Mensagem

Trinta anos decorridos sobre a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, é ocasião para perguntar: o balanço da nossa presença na Europa é ou não é positivo? A questão submete-nos a um universo de problemas, centrado na pergunta que hoje se afigura vital para compreender o nosso futuro coletivo, e que antecipei desde logo no título para este ensaio: que Europa é esta? O ano que agora terminou foi fecundo em adversidades que puseram a nu as fragilidades das instituições comunitárias e a diversidade de posições relativas à construção europeia. Será esta ainda a Europa de Delors e dos pais fundadores, ou a Europa dos refugiados e dos muros húngaros, ou da tendência autocrática visível de Varsóvia a Budapeste, ou do ‘Grexit’ e do ‘Brexit’, ou de Varoufakis e dos “mercados”, ou de Le Pén e da Aurora Dourada? A análise que aqui se pretende fazer passa então por dois planos: um primeiro, verdadeiramente audacioso, de perceber se existe Europa, e que Europa existe hoje; e um segundo que passa por saber se nós, enquanto país, cabemos nela.

Ponto primeiro. A Europa existe? Em 1992, ano de Maastricht, a filósofa húngara Agnes Heller defendia, num ensaio intitulado “Europa: um epílogo?”, que não existe nenhuma «cultura europeia». A Europa seria, culturalmente, um aglomerado de contributos eminentemente nacionais. Cultura e nação são conceitos naturalmente interligados – e, não sendo a Europa uma nação, poderíamos até dizer, numa aproximação a Hegel e a Bodin, que a unificação cultural de um continente seria “contranatural”. Vejamos: para se falar em Europa como entidade civilizacional – o «espírito da Europa» -, então é preciso buscar nas raízes culturais aquilo que dela faz, não uma nação, é certo, mas um coletivo de coletivos, uma cultura de culturas, se quisermos, um supercoletivo e uma supercultura. Mais: o edifício institucional que se diz a Europa de hoje, sob a forma de uma União, tem de estar sustentado numa qualquer argamassa civilizacional, aquilo a que Alexandre Mirlesse chamou de uma ideia, uma consciência europeia.

Existirá, efetivamente, uma Europa? Ou apenas uma não-Europa, isto é, uma civilização europeia definida pelo seu oposto, não pelo que é, mas pelo que não é, a ditadura, a guerra, a discriminação, o totalitarismo, etc., etc.? Será que a cultura europeia é uma cultura formada e assente no «medo»? É esta a visão de Heller; mas a nós a verdade afigura-se como algo diferente.

Começamos, como que numa narrativa in media res, em 1095, naquele discurso memorável que exorta à Primeira Cruzada. Urbano II não refere por uma vez a palavra “Europa”; mas é ela que dá sentido ao corpo do texto, o da união dos “Francos” contra os infiéis. As Cruzadas significaram, não apenas um esforço coletivo de reconquista da Terra Santa, mas a união de um continente sob a égide espiritual e, diga-se, cultural, de uma Igreja que era mais do que simples religião. É a Respublica Christiana, como confirmada por Rosseau ainda em pleno século XVIII.

Entre os mais importantes traços exteriorizáveis da cultura de um povo está, inevitavelmente, a língua. A união geográfica do continente foi completada pela aproximação idiomática, deixada, claro, pelos latinos. Uma certa unidade, ou uma premonição dessa futura unidade, via-se já no mito grego de Europa, filha de Zeus; e era Estrabão que falava de uma comunhão entre todos os povos da Europa, a civilização contrastante com a incivilizada Ásia. E se isto não é suficiente para provar que existia, já, uma certa unidade civilizacional, construída em torno da língua e da Respublica, e também dos hábitos e costumes, deixaremos Urbano e os latinos e passaremos para Bacon, que usava a expressão, já em 1623: «nós, europeus». Não parece uma evocação do velho Sócrates, o “cidadão do mundo”, esta frase incomum mas intuitiva, “nós, europeus”?

E, contudo, vemos como a história deste continente é uma história de guerra, guerra entre Estados e entre nações. Não será, desta forma, um paradoxo alegar que existe uma unidade entre as nações europeias? Não será atrevimento dizer que há uma “ideia de Europa” que se sobrepõe à ideia de Estado ou de nação? Nunca nenhum continente atravessou tão vasto número de conflitos no seu seio. E aí poderemos dar razão ao “medo”, à teoria negativa de Heller, ainda mais quando vemos que os tempos em que mais se incentivou a ideia europeia sucederam-se a épocas de guerra – a ideia motivada, então, pelo medo da guerra. Os séculos XV, XVI, XVIII e XIX, em que se apelou à união da Europa, contrastam vivamente com os tempos catastróficos dos séculos XIV, XVII e XX.

Séculos XV e XVI: o homem renascentista, a apologia do Império Romano, o tempo em que surge Maquiavel como primeiro europeísta convicto, mas também Erasmo de Roterdão, Thomas More e, sob a influência deste último, Henrique VIII de Inglaterra falando de um continente sem conflitos e sem fronteiras. Olhamos para o século que precedeu essa época: Peste Negra, Guerra dos Cem Anos, nascimento das primeiras heresias, das bruxarias, a Europa no crepúsculo, uma Europa suicidária. Temos depois o século XVIII, onde se forma decisivamente uma consciência europeia, incentivada por Montesquieu e Voltaire, pelo “apátrida” Rosseau, por Cristina da Suécia, Catarina da Rússia e Frederico da Prússia, todo um leque de grandes intelectuais e “déspotas iluminados”. Olhamos para o século que o precedeu: guerras entre católicos e protestantes, Reforma e Contra-Reforma, Guerra dos Trinta Anos, novamente uma Europa no crepúsculo. Olhamos para o século XIX, sucessor das Luzes, tempo que, embora de guerra, é também o da Europa unida sob a égide, primeiro, de Napoleão e, segundo, da Santa Aliança, uma Europa que cada vez mais se aproxima e se interliga com estradas e caminhos de ferro, Europa que se solidariza com os movimentos de unificação na Alemanha e na Itália e com a guerra de libertação na Grécia. E temos depois o século XX, duas guerras mundiais, novamente essa Europa suicidária. O impulso europeísta surgia sempre como reação à catástrofe que o antecedia – algo que se mantém, até hoje.

Então, a Europa existe, em primeiro lugar, pelo medo. O medo não forma uma ideia; delimita-a, é certo, mas não lhe dá coesão, não define nem muito menos densifica o abstrato. Não existiria então uma ideia, mas apenas o medo? Churchill acreditava numa Europa mas não se dizia europeu; para ele, o sonho era sobretudo institucional, mas não via grande unidade cultural na Europa que o rodeava – e, naquela altura, quem poderia ver, depois de dezenas de milhões de mortos no espaço de duas décadas?

Se aceitarmos que a Europa está unida apenas pelo medo – e a União Europeia enquanto artifício pode ser resultado precisamente desse medo -, contradizemos a própria matriz do nosso pensamento. Gregos e romanos não propuseram um continente unido, mas deixaram-nos a ideia, incompleta, enevoada, mas eloquente, de que essa Europa existe. O mais fácil será dizer que, tal como somos portugueses por sermos cidadãos do Estado português, somos europeus porque fazemos parte da União Europeia; mas existe algo anterior a isso, um passo prévio que acompanha a obra de brilhantes académicos e grandes estadistas, um eco do “nós, europeus” de Bacon, de um “cidadão do mundo”, deste mundo nosso, uma cultura nossa, uma civilização com influências de outros continentes mas com um núcleo seu, este Ocidente do cristianismo e do latim, da tolerância de Voltaire, da república de Montesquieu, do imperativo categórico de Kant, um continente unido nesse espírito. Difícil será dizer que somos europeus porque fazemos parte de uma Europa, a Europa como ideia, como conjunto irredutível de valores, como realidade anterior ao Estado e à União Europeia. Tarefa difícil, não por ser impossível, não porque essa Europa não existe, mas por ser de resposta intuitiva, por estar tão enraizada no coração dos homens que é difícil dar-lhe um nome. Os alemães deram-lhe um: Zusammengehörigkeitsgefühl. O sentimento de pertencermos a um conjunto. Por pouco que seja, a resposta fica dada. Não pela narrativa fictícia que é a História, não pelas exortações à constituição de uns “Estados Unidos da Europa”, mas por um sentimento, um conceito indeterminado e intuitivo, o de sermos Europa por estarmos juntos.

O civilizacional precede e constitui necessariamente o político. O político que nasceu no pós-guerra terá como base este sentido, apelando a escritos antigos, aos “Estados Unidos” de Jastrzebowski e de Victor Hugo, à teologia de Danilevsky, à Respublica Christiana, a Ovídio e à deusa Europa, como se a Europa sempre lá estivesse permanecido em estado latente. O euroceticismo responde que não, que essa ideia e esse sentimento não existem: e esse fenómeno será precisamente o daqueles homens em cuja intuição não se inclui o sentimento de ser europeu. Mas mesmo que os céticos estejam certos, o euroceticismo continua a falhar, se não no plano das ideias, pelo menos no plano da realidade: a União Europeia existe devido ao medo, e por alguma razão será! As guerras mundiais – que foram, antes de mais, guerras europeias – deixaram a Europa destruída e abandonaram este continente ao vazio. Foi a soberania dos Estados que conduziu a esse resultado: a inimizade entre ingleses e franceses, de um lado, e alemães, do outro, não derivava de um ódio desnaturado entre as populações, mas do próprio Estado, da luta pelo poder, começando no mercantilismo do século XVII, prolongando-se pela dinâmica industrial do século XIX, que conduziu a uma tensão económica e geopolítica nunca antes vista. Seguiram-se os acontecimentos que conhecemos: Holocausto, mortes, destruição. E os céticos pedem um retorno à soberania? A resposta a isso é simples: somos pequenos demais para conhecer a História, mas somos muitas vezes irracionais ao ponto de esquecermos a pouca História que conhecemos.

A Europa existe, então. No plano da cultura, existe porque nascida do cristianismo e unida pela matriz greco-latina. No plano das ideias, existe porque sim. No plano dos factos, porque se exige que sim.

Ponto segundo. E onde cabe Portugal? Será que somos um caso à parte, uma ilha separada do continente como imaginou Saramago? Será que a nossa história nos autonomiza, de tão ligados estarmos ao mar, de tão distantes termos permanecido em relação aos grandes conflitos e aos grandes acontecimentos da história do continente europeu? Portugal não teve a sua Guerra dos Cem Anos, não teve o seu papel nas unificações do século XIX, não teve a sua quota-parte de engenho na Revolução Industrial. Pelo contrário, fomos para longe, olhámos para Sul, partimos em direção a África, à Ásia e às Américas, e construímos o nosso próprio espaço, um Império não europeu, mas global, juntando etnias, convertendo indígenas, edificando uma cultura própria, com influências árabes, africanas, nativas. Um império aberto ao mundo, distinto do inglês, do francês ou mesmo do espanhol, que haviam subjugado, pela força, os habitantes locais, impondo uma cultura europeia, hábitos europeus, criando um “Novo Mundo” que ao princípio mais não era do que a réplica de uma Europa envelhecida. Criámos, com isso, uma áurea, um apego exagerado a um passado – passado glorioso, sem dúvida, mas que não deixava de ser passado. O mundo lusófono deixou de estar dependente de Portugal, e o nosso país perdeu-se com o avanço dos séculos. Não estando ainda completamente “europeizados”, tínhamos dado, contudo, um contributo notável à Europa: ao falarmos de um continente “aberto ao mundo”, começamos na Europa que se lançou pelas Descobertas – e, nesse sentido, também fomos nós que a abrimos ao mundo. No século XIX, éramos muito mais europeus do que havíamos sido antes: por força dos saques e das pilhagens dos soldados franceses, o liberalismo chegou à nossa terra. Um liberalismo que começou por ser moderado e se converteu numa ideologia, elevada a base do regime, propondo o livre-cambismo como motor para o progresso económico. Com todos os aspetos negativos que ele possa ter trazido, o liberalismo quebrou fronteiras e colocou-nos um pouco mais perto do centro da Europa. Mergulhámos na literatura europeia, na pintura europeia, sempre com décadas de atraso, mas cada vez mais europeus. Herculano e Garrett trouxeram-nos o romantismo de Goethe e de Byron; Eça, o realismo de Victor Hugo e de Dickens. Lisboa tornava-se numa capital que, sendo ainda, em primeiro lugar, uma cidade do mundo, era cada vez mais uma cidade europeia. E Portugal acompanhava, ao seu próprio ritmo, a dinâmica de uma Europa em acelerada mudança. Quando perdemos as colónias, éramos já muito mais um país europeu do que outra coisa qualquer. Éramos um país republicano, mas mais do que isso éramos uma nação próxima da cultura ocidental e um povo de “pequenos prazeres”, ao melhor estilo europeu. As matrizes, a cristã e a greco-romana, essas sempre cá tinham estado.

Portanto, com particularidades que ainda hoje permanecem vivas, e por vezes se acentuam, fomos sempre europeus. Europeus da “periferia”, mas europeus. Não era Portugal e Espanha, como Saramago dizia. Nem era um Portugal socialista, próximo da União Soviética, como Cunhal e Sartre desejavam. Nem tão pouco era um Portugal “orgulhosamente só” ao estilo de Salazar. Era um Portugal que, tendo sido afastado do mundo durante quarenta anos de ditadura, se lançava agora de braços abertos para o continente e a cultura que sempre haviam sido os seus. Em 1986, aderimos. Essa adesão não foi só a inclusão no artifício político, frágil e incerto, que é hoje a União Europeia. Para nós, portugueses, a adesão foi um renascer da participação de Portugal na civilização da qual sempre fez parte. Para países como a França e a Alemanha, inseridas na sua plenitude em toda a dinâmica política, económica e cultural da Europa do século XX, a União Europeia era um plus; para nós, foi tudo.

O balanço, é positivo ou negativo? O país “virtuoso” dos tempos do salazarismo, visto lá fora como uma ditadura de gente pobre e de estadistas com mente fechada, deu lugar a uma nação por sua vez aberta ao mundo, como a nossa história exigia e como a nossa cultura nos definia. Mas o “país” e a “nação” tornaram-se também, é preciso dizer, em “economia”, onde o cidadão europeu deu lugar ao contribuinte europeu. O que devemos ter em conta é que o percurso das civilizações é o seguinte: um edifício cultural primeiro, e, depois, simultaneamente, o aprofundamento do económico e do político; mas a União Europeia, que começou como projeto eminentemente político de Delors, de Adenauer e de Monnet, acabou por dar continuidade apenas ao percurso económico, ultimamente moldado em termos liberais. O político estagnou; em vez da responsabilidade política – que Delors dizia ser fundamental para o sucesso do projeto europeu -, surgiu a desresponsabilização burocrática, em que tudo está certo, a culpa é simplesmente dos números, e tudo funciona assim, números, números e números, sem ideias ou causas dignas desse nome. E a União Europeia falhou nesse aspeto: desonrou a memória de uma Europa ativa e proativa, substituindo-a por este corpo submisso e vazio de ideias que começa a ser a construção política europeia. Será, por isso, um projeto em que o positivo ainda não compensou o negativo? Nunca poderemos saber o que teria sido se não tivesse existido a Europa de hoje, mas podemos adivinhar: a União Europeia livrou-nos de novas guerras fratricidas no seio deste nosso continente. Desse ponto de vista, o projeto foi de imediato positivo.

Para nós, como disse, o balanço ainda é mais positivo. Há a estagnação do país, é certo. Mas temos um país rico – ou, pelo menos, desenvolvido. Antes da nossa entrada, éramos um país pobre. Temos uma nação cosmopolita, letrada e tolerante. Fazemos parte de um projeto que está em crise, mas do qual fazemos parte, e no qual podemos ter uma voz ativa.

Portugal é a Europa, e a Europa é também Portugal. A Europa sem União Europeia seria hoje, com toda a probabilidade, mais pobre e muito mais instável. Portugal sem a Europa seria um país isolado do mundo à sua volta, preso ao seu passado e, sobretudo, desonroso da sua memória. Hoje, a Europa continua, lenta mas corajosamente, o seu percurso como grande civilização que é. E Portugal, lenta mas corajosamente, continua com ela.